quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Ainda não consigo chorar


Hoje o trabalho, lá no escritório, correu bem. Escrevi um texto em resposta a uma reclamação que me deixou extenuada, mas que no fim me rendeu o elogio da diretora, ‘Muito bem Manuela. Está redigido de forma impecável.’

Desliguei o computador, vesti o casaco e peguei na mala. Passei pela sala do micro-ondas onde almoço todos os dias com as minhas colegas e apanhei a lancheira onde levei a refeição (estavam ótimas as favas, António).
Ao sair para a rua fui saudada por uma aragem morna que me redobrou o contento da sexta-feira e pensei ‘Se o tempo estiver assim amanhã podemos ir dar um mergulho à praia. Não temos os miúdos este fim de semana e o António adora praia.’   

Dirigi-me à estação dos comboios e (que sorte) não espero mais que dois minutos. Assim chego a tempo de ir ao ginásio com a minha amiga Mafalda. Pomos a conversa em dia e sempre lavamos a vista com aquele instrutor giro que nos dá as aulas de Core

Já no comboio distraio-me a reparar nos outros viajantes, cheios de personalidade. Auriculares pendurados nos ouvidos e os seus telefones móveis, acessórios obrigatórios para quem viaja de comboio e não quer ser olhado como um estranho. Alegra-me sentir o nível de auto confiança, profissional e pessoal, das passageiras que conversam mesmo atrás de mim, ‘E eu tive que dizer a um engenheiro, para deixar de continuar a enviar mais “é-mails”, pois não adiantava nada.’, dizia a mais faladora, ‘Porque se há coisa que eu não sou é estúpida.’. Sempre me intrigou a razão deste tipo de observações à própria pessoa.    

Ao chegar a casa, regressada do ginásio, sinto frio. Reparo que deixaste a janela da sala aberta quando já esperava que tivesses acendido a lareira para acompanhar o nosso jantar de boas vindas a estes dois dias de descanso. Só nós dois, a namorarmos um pouco.

Julgo ouvir-te no duche, mas antes passo pela cozinha e retiro da lancheira a caixa com o resto da quiche do almoço que não terminei (já me saíram melhores estas tartes). Guardei-a no frigorífico e pus a caixa para lavar.

Ao chegar ao nosso quarto reparo que o barulho da água a correr vem do andar de cima e percebo que afinal ainda não chegaste. Tento lembrar-me se tinhas avisado de reunião tardia ou algum jantar da empresa.  

Vou preparando os nossos petiscos. Aqueço a sopa, ponho a mesa e escolho uma garrafa dum daqueles tintos que sempre gostámos.

E sento-me a pensar em nós. Como nos conhecemos, o dia do nosso casamento. Por vezes, quando os nossos filhos conseguem vagar para vir cá almoçar connosco, erguemos o copo e fazemos-te um brinde, como sempre nos habituaste e fizeste ao retrato da tua mãe. E contamos anedotas que nos ensinaste para que possamos rir contigo. 

O tempo passa e tu não chegas. Aguardo um telefonema teu que não toca. Agora me lembro que hoje não me respondeste à mensagem que te envio desde sempre à hora do almoço.

Abro a garrafa escolhida e bebo um pouco do vinho que sempre ajuda a desfazer este nó que sinto na garganta.

António, se não te importas, vou continuar a por dois pratos na mesa. É que sabes, custa-me estar para aqui sozinha. E ainda não consigo chorar. Não consigo porque ainda não me habituei à ideia de teres morrido sem esperares por mim.

4 comentários:

  1. olha eu chorei so de ler e pensar que um dia isso vai acontecer.. dia esse espero que seja daqui a muitos muitos muitos anos... não sei como não se consegue chorar!!! nem como se consegue falar de morte quando nem um cabelo branco se tem!!!

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  2. Gostei muito, e as favas de certeza que estavam óptimas :)

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  3. Olha.. Eu lá deixei cair umas lagrimas. Que vergonha.
    E os "amaricanos" que estão à minha frente aqui no lounge do aeroporto, também parecem emocionados. Mas deve ser porque não encontram um Mcdonald para um "pequeno" snack.
    O "brinde" é um "gatilho de lágrimas" perfeito. Lágrimas de amor incondicional e eterno.

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  4. Miguel, que escrita tão real.Senti isso quando a minha mãe e a minha irmãfaleceram.Nso sei como não se pode chorar.Só de pensar que ainda vou chorar tanto, até foi.Abraço

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